O dilema: “Saúde X Economia”
Os mais prejudicados economicamente também são especialmente afetados pela Covid-19
Reportagem de Bárbara Miranda, Carol Cassese e Laura Rossetti.
Jornalismo Econômico (5º período de Jornalismo)
A festa acabou. Não há carnaval que apague, economia que supere, emprego que fortaleça. A festa acabou para 35.047 brasileiros. Para pais que não poderão acompanhar o crescimento dos filhos, para filhos que, não seguindo o ciclo natural da vida foram enterrados pelos seus pais, para os avós que se diziam “na flor da idade” e também para nós, os sobreviventes com a árdua missão de limpar a sujeira que ficou no final do dia. O impasse entre saúde e economia não é novo. O escritor moçambicano, Mia Couto, já dizia: “a diferença entre a guerra e a paz é a seguinte: na guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na paz, os pobres são os primeiros a morrer”. O apartheid social provocado pela Covid-19 é mascarado pelas frases governamentais emitidas no intervalo da novela.
Não é coincidência que a primeira morte pelo vírus no Rio de Janeiro tenha sido de uma mulher, empregada doméstica, a quem a patroa não reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, e não pensou que era preciso contar que poderia estar contaminada pela doença, cujos sintomas já eram sentidos após o retorno de um Carnaval na Itália. Dona Cleunice, de 63 anos, morreu trabalhando. A patroa? Ela está viva e, possivelmente, já tenha contratado alguém para substituir a empregada. No entanto, não será possível para o sobrinho de Dona Cleunice, Lucas, colocar alguém no lugar da tia, que ele descreve como “uma pessoa muito trabalhadora”.
Segundo uma apuração da Agência Pública, a cada 2,4 negros em estado grave de Covid-19, há uma morte. Por outro lado, entre brancos, uma morte foi registrada a cada 3,2 pacientes em estado grave. A maior parte dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) são negros, que também são maioria dos pacientes com tuberculose, diabetes e doenças renais crônicas. Cleunice, a empregada doméstica do Rio de Janeiro e tia do Lucas, como já era de se esperar, dependeu do SUS e foi uma das vidas negras perdidas.
Diante de uma doença que mata principalmente pobres, boa parte dos donos das grandes empresas defendem que é preciso sacrificar algumas pessoas para a economia voltar a funcionar. Para Junior Durski, dono da rede de restaurantes Madero, o Brasil não pode parar por conta de “5 ou 7 mil pessoas que irão morrer”. Essa declaração foi dada em 23 de março, no Instagram do empresário. Roberto Justus, também empresário e apresentador, em um vídeo publicado no mesmo dia em seu perfil no Instagram demonstrou não pensar diferente de Durski. Justus declarou que há no país uma histeria desnecessária em relação ao vírus.
Negar que países que adotaram medidas mais brandas de isolamento social sofreram impactos econômicos similares ao de nações que tiveram ações mais rígidas vai contra os resultados da maioria das pesquisas. A Suécia, país que manteve boa parte dos estabelecimentos abertos e escolas funcionando, é prova disso. Em comparação a países vizinhos, como Dinamarca, Finlândia e Noruega, que adotaram medidas mais rígidas, não há significativa diferença no dano econômico. Enquanto a redução do PIB sueco deve ficar em 6,8%, a média da queda dos outros países é de 6,3%. A Suécia é ainda o país com a maior taxa de mortalidade por Covid-19 no mundo. Em 5 de junho, o presidente Donald Trump declarou: “Teríamos 2 milhões de mortos se tivéssemos seguido Brasil e Suécia”.
Existe um sacrifício mórbido que envolve o falso dilema: “privilegiar a saúde ou a economia?”. Segundo o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, que diferente do Messias esperado pelo cristianismo, não se comporta como o salvador da nação diante do crítico cenário vivenciado, “alguns vão morrer, lamento, essa é a vida”. A grande questão é quem são esses “alguns”? Serão os quatro filhos dele, a esposa ou a filha de apenas 10 anos? Esse desprezo com a vida do próximo é desleal ao juramento da sua posse como presidente, em que ele prometeu “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis e promover o bem geral do povo brasileiro”. Tim Maia já entoava a plenos pulmões: “na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri”. Fora da arte, nesse delicado momento, é possível perceber isso na realidade.
Se por um lado, o chefe do Estado brasileiro pede em rede nacional que as pessoas saiam para trabalhar, afirmando que o vírus é uma “gripezinha”, por outro, na Argentina, o posicionamento do presidente Alberto Fernández é claro: “uma economia que cai sempre se levanta, mas uma vida que se termina não se levanta mais”. A obviedade da frase espanta, aliada à ideia que ela ainda precisa ser dita.
Os impactos sanitários e econômicos da pandemia ecoam também nas instituições de pesquisa. Profissionais do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional), da UFMG, publicaram uma pesquisa analisando os cenários de isolamento social e impactos econômicos da Covid-19 em Minas Gerais. No estudo, foram analisadas três diferentes estratégias de isolamento. A primeira foi a estratégia de “Distanciamento estendido”, A segunda foi o “isolamento parcial”, considerado um meio termo, e, por fim, a terceira estratégia, que não prevê nenhum distanciamento. Os resultados da pesquisa mostraram que a estratégia de distanciamento estendido tem maiores benefícios econômicos, estimando a perda de 50 bilhões de reais.
Parece não haver uma luz no fim do túnel. O vírus intensificou as mazelas do país e, a cada noite, com a atualização cruel do número de vidas perdidas no Jornal Nacional, mais e mais perguntas surgem. Os responsáveis por respondê-las, isto é, governantes, ministros e autoridades de saúde possuem apenas estimativas. E, na pior das hipóteses afirmam que “o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”, como disse, em 26 de março deste ano, o chefe do Executivo na chegada ao Palácio do Alvorada.
O vídeo do jornal britânico The Guardian mostra a realidade de enfrentamento ao coronavírus dos moradores da favela de Acari, na cidade do Rio de Janeiro. Confira:
Com o isolamento social, haverá mortes de CNPJs
Manaus, 2020.
Fotógrafo Raphael Alves trabalha na série “Insulae” e mantém registros fotográficos da pandemia na capital amazonense.