O roubo da vida eterna
Folhetim – 1º capítulo
Ana Pardinho
Raios lúgubres do único filete da lua minguante, que às sombras cósmicas se recolhia, iluminavam a clareira de um vale escondido entre as muitas colinas de uma terra próspera. Mas era à penumbra entre as franjas espessas de grandes samambaias que estava oculto o brilho maior: a luz da fulgurosa e secreta devoção de um amante por sua amada.
Amor surgido do acaso e da inocência travessa da fuga de mais uma das ordens que torturavam o espírito do herdeiro do trono Caleb del Vale.
Na noite antes de seu noivado, Caleb despira o manto de veludo carmesim, colocara de lado o relógio de bolso feito de ouro e fora colocado na cama por um criado sob ordens do rei de assegurar que o herdeiro estivesse bem descansado para o dia seguinte, em que o castelo receberia a família real de um pretenso reino aliado.
Como os animais buscam abrigo ao prenúncio de uma tempestade, Caleb sabia o que o esperava. A consciência o obrigava a amar aqueles que lhe trouxeram ao mundo, mas, oh! Difícil era cumprir os desígnios da caprichosa consciência quando Caleb sabia das reais intenções do casal real disfarçados sob o véu festivo.
Sobrecarregado com as pressões que o fazem prantear desde que de sua mãe o ventre deixara, cobriu seus ombros com uma fronha de algodão bordado e escapuliu de seu seguro e solitário quarto no castelo.
E, nas trevas da noite quase sem lua, sentira perder seu coração igualmente turvo diante da perspectiva de viver sonhos que não eram seus. Correu pelas colinas descampadas num frenesi melancólico, quase desejando que os arqueiros de vigia nas torres o confundissem com um vadio ou um bruxo e ali mesmo o abatessem.
Quando no ponto mais alto de uma colina chegava, permitia-se entregar ao pranto copioso. Então levantava-se e corria morro a baixo, e quando chegava ao cume seguinte, o vento havia acariciado seu rosto e limpado suas lágrimas. Afago este que não sabia ser típico de seres sensíveis, pois nunca o recebera de ninguém.
Em uma das descidas entre suas ascenções de desespero sentiu que não estava só. Pois no vale que a partir daquela noite se destacaria entre todos os outros, vislumbrou a silhueta encolhida e soluçante de uma alma tão atormentada quanto a sua. Caleb sentiu que seu choro era frívolo diante do sofrimento daquela dama de branco.
Caleb ainda queria chorar, mas não mais por si mesmo. Aproximou-se da dama de branco e colocou sobre seus ombros a fronha que levara. A dama soltou um arquejo assustado, e Caleb recuou surpreso com sua própria ousadia. A dama de branco dessubou Caleb na grama úmida levantando uma nuvem de esporos de samambaias que, como estrelas douradas, fizeram a dama de branco se parecer com um raio de lua.
Aquela figura estranha segurava contra o chão os pulsos que Caleb não ousava, tampouco queria, afastar daquele toque.
— Não sabe que é indelicado surpreender uma donzela sozinha à noite? — disse a dama de branco ainda às lágrimas.
Ultrajado com a acusação, Caleb sentiu ferver seu sangue nobre. Desvencilhou-se da dama e a deixou caída na grama úmida.
— Como ousa me tocar, plebeia!
As lágrimas cessaram de verter dos olhos da dama, e o rubor do pranto foi arrebatado pela palidez de puro terror. Caleb ressentiu-se do que dissera, pensando consigo mesmo que soara como seu pai quando ofendia os servos como se tivessem culpa de não serem da realeza.
— Por favor, perdoe meu comportamento. — implorou Caleb, oferecendo a mão à dama. — Eu abusei de minha posição enquanto você me enfrentou quando fui eu quem te assustou. É mais corajosa do que todos os guerreiros que conheço. Te surpreendi quando queria estar só então, para que fiquemos empatados, lhe contarei um segredo meu se jurar me perdoar. Você jura? — a jovem fez que sim, e Caleb continuou — Também vim para esse vale chorando. Me compadeci ao ver você, tão triste e sozinha, pois sei como é se sentir desamparado. Mas fiquei envergonhado e me afastei. Foi isso.
— Você é o príncipe? — a dama esfregou o rosto abatido. Caleb se preparou para ouvir algum pedido dela: joias, ouro ou roupas boas. No entanto, com sua confirmação, a jovem disse: — Você já deve ter visto outros lugares além dessas colinas. Por acaso já viu um baobá? Ouvi mercadores falando sobre isso uma vez, mas estava escondida e fiquei com medo de me revelar para perguntar o que era. Você sabe o que é?
— Sinto muito. — disse Caleb — Nunca vi e não sei o que é. Mas posso perguntar aos estudiosos do castelo e voltar aqui para te contar outro dia. Vem sempre aqui?
— Não… Só quando a lua está quase indo embora.
— Então eu volto na próxima lua nova e digo o que é um baobá.
Com essa promessa regressou ao castelo sem acreditar no quão desalentado estava antes de encontrar a dama de branco — sequer perguntara seu nome! Dormiu profundamente com a cabeça pousada em um travesseiro sem fronha.
Somente a luz cegante do alvorecer trouxe à tona a lembrança do motivo de sua fuga. Era o dia da visita da família real do reino vizinho. O dia em que o jovem príncipe teria seu destino costurado ao da princesa do outro reino em um quimérico e irrevogável noivado. Um arranjo de seus pais que nada tinha de sincero e que o rei e a rainha esperavam que o filho forjasse em palavras diante da princesa Violet Florença.
Havia um amor há muito cultivado naturalmente entre Caleb e Violet, mas não na forma de um véu e um anel como queriam seus pais. Mas os Del Vale obrigaram Caleb a fazer o pedido, e ele sabia, os Florença obrigaram Violet a aceitá-lo. E foi o que os jovens fizeram mecanicamente sob o olhar de aprovação dos pais e a dor em seus corações que agora eram forçados a se amar. E o amor que já tinham, verdadeiro e desinteressado, viu-se enclausurado.
— Nossos reinos vivem em paz. — chorou Violet — Eu mesma lideraria nossas tropas se você precisasse de ajuda, Caleb. Por que nos obrigar a isso?
Caleb não soube responder. Quando Violet se retirou para dormir, Caleb saiu correndo do palácio como no dia anterior até o vale onde conhecera a dama de branco. Seu coração jubilou-se ao vislumbrá-la ajoelhada na grama. Quis ir até ela, mas foi detido pela vergonha de ainda não ter a resposta que lhe prometera.
Desejoso de vê-la e curioso sobre seus mistérios, escondeu-se entre as franjas de uma samambaia na orla da clareira de salgueiros. Alertada pelo farfalhar das folhas, a jovem o encontrou.
— Oh, por favor, — implorou o príncipe — finja que sou mais uma planta e e ignore, pois ainda não tenho sua resposta.
— Então vamos fingir que somo outras pessoas hoje. — disse a dama de branco — E de fato somos, pois aprendemos e esquecemos coisas entre as horas que se passaram. Mas como a Brigite de ontem, a Brigite de hoje não quer falar sobre o que faz nesse vale.
— E se me respondesse apenas quando sua resposta eu lhe trouxer? Até lá, não me prive de deleitar meus olhos com sua presença graciosa.
Caleb não viu o rubor no rosto de Brigite quando ela assentiu na penumbra.
Luas nasceram e se puseram, ainda que de dia espreitassem intrometidas como se inspecionassem se o sol brilhava direito sobre este mundo. Caleb encontrou tempo para conseguir a resposta de Brigite, ainda que os preparativos para o casamento com Violet ocupassem quase todo seu dia.
Ao primeiro filete da lua minguante, saiu para encontrar Brigite.
Naquela noite, no entanto, andou lentamente e sem ânimo pelo vale. Brigite ainda iria querer vê-lo depois de ter sua resposta? Pensando nisso, saiu do castelo mais cedo planejando admirá-la em segredo por alguns instantes até a fatídica despedida.
Tampouco lhe importava o segredo de Brigite. Ele a amava. Amava como os reis queriam que amasse Violet. Por toda a fase da lua minguante que passara no vale respondendo o que sabia das infindáveis perguntas de Brigite, e prometendo descobrir o que não sabia para contar na noite seguinte, não teve chance de fazer suas próprias perguntas. Estava encantado. E estarrecido ficou quando viu sua amada chegar ao vale cambaleante e cair na relva.
Caleb encontrou Brigite em tempo de ouvir seu último gorgolejo de vida, ceifada pela flecha que despontava em seu pescoço.