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Edição Jornalística – PUC Minas

CinemaCultura

Estamira: um documentário que agrega na discussão sobre a Luta Antimaniconial

Professora de cinema discute a forma de representação de pessoas em sofrimento mental no documentário Estamira

por Lucas Mendes Figueiredo Bregunci

Em maio, especificamente no dia 18, comemora-se o Dia da Luta Antimanicomial, quando geralmente acontecem diversas ações promovidas pelo poder público e pela sociedade civil, a fim de gerar conscientização a respeito dessa luta, que visa extinguir a associação dos pacientes psiquiátricos às noções de incapacidade, anormalidade, periculosidade, e trazer à tona a diversidade da existência humana.

Estamira, personagem central do documentário, discursando no aterro sanitário

Diante de mais um ano de pandemia, neste 2021 as ações em alusão à Luta Antimanicomial acontecem virtualmente. E para não ficar de fora, vamos bater um papo com Rochele Zandavalli, acadêmica e professora de Cinema da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que vai analisar conosco o documentário Estamira, dirigido por Marcos Prado, e discutir as formas de representação de pessoas em sofrimento mental nos produtos midiáticos.

Esse filme leva o nome de sua personagem central, uma senhora com doenças psiquiátricas que trabalha em um aterro sanitário em Duque de Caxias, no Rio De Janeiro. O início do documentário é marcado por uma longa cena em preto e branco, acompanhada por uma trilha sonora com um vocal feminino ao fundo, criando uma atmosfera mística, enquanto Estamira percorre o caminho até o aterro sanitário Jardim Gramacho, onde passa parte da semana. Nessa cena, Estamira é apresentada ao público no monólogo em que divaga, em meio ao lixo, a respeito de sua missão messiânica de revelar ao mundo a verdade.

“É interessante pontuar que este documentário assume um ponto de vista a partir do olhar de quem o filma, como se o cineasta fosse um observador das cenas, sem tentar influenciá-las diretamente, se colocar as personagens numa cadeira e entrevistá-las. Nesse filme, isso torna os depoimentos de Estamira um fio condutor para  a narrativa. Essa opção de se apropriar da subjetividade e da história de vida da personagem para a construção do filme e, por meio dessa construção, o próprio filme embarca na atmosfera de Estamira… o espectador consegue embarcar no mundo de Estamira com muito mais facilidade”, analisa Rochelle.

A construção do filme acontece de maneira que os elementos de som e composição de imagem potencializam tanto as falas da personagem que, antes dela ser concebida como “louca”, é apresentada ao público como uma pessoa sábia e lúcida, que possui uma visão profundamente crítica a respeito do mundo à sua volta. Suas doenças psiquiátricas só entram em discussão ao final do filme. Antes ela discorre com muita lucidez e firmeza a respeito de si própria, de Deus, das doenças do planeta e de seu passado marcado por violências físicas, psicológicas e sexuais e diversos outros temas.

Aterro Sanitário Jardim Gramacho, onde Estamira passa parte de seus dias

“O que é imaginário tem, existe, é. Sabia que tudo que é imaginado existe, é e tem?  A minha carne, o sangue, é indefesa como a terra; mas eu, a minha aura, não é indefesa não” – Trecho de um monólogo de Estamira

As formas que o diretor Marcos Prado utiliza para apresentar Estamira ao público contribuem para reflexões sobre os modos de representação de pessoas em sofrimento mental nos produtos midiáticos. “O conceito de loucura é historicamente atrelado à exclusão social e à estigmatização das pessoas em sofrimento mental e isso revela, na realidade, detalhes obscuros sobre essa sociedade que desumaniza aqueles em estados de perturbação e sofrimento”, afirma Rochele.

Considerando a realidade de estigmatização vivida pelas pessoas em sofrimento mental, caso as doenças psiquiátricas de Estamira tivessem sido apresentadas desde o início do filme, muito possivelmente esse estigma acompanharia, também desde o início, a ótica pela qual o espectador concebe as falas da personagem.

“Esse documentário contribui para repensarmos sobre a associação do louco às noções da incapacidade, anormalidade, periculosidade e trazer à tona a diversidade da existência humana contida na condição reconhecida como loucura. Quando o filme constrói uma atmosfera que empodera e potencializa a personagem sem estigmatizá-la e dando valor ao que ela tem a dizer, sem dar enfoque principal na sua condição psiquiátrica, ele deve ser tido como referência para retratar pessoas em sofrimento mental”, pontua a professora e pesquisadora.  

Dessa maneira, as relações de reciprocidade entre Estamira e o espectador estão no centro do processo de construção narrativa desse documentário. É por meio dessa possibilidade de enxergar o mundo como Estamira o enxerga que nasce a  sensibilização e, até mesmo, identificação por parte do espectador com os processos vividos por ela. O documentário explora a ideia de que a personagem está em harmonia consigo própria e com o meio em que vive, sem estigmatizar os delírios e até mesmo surtos com os quais ela convive. Assim, esse documentário brasileiro emplaca como uma grande obra que eleva a discussão sobre saúde mental, retirando como centro do processo narrativo a doença psiquiátrica e colocando, assim, o indivíduo como protagonista.

Assista a Estamira:

https://www.youtube.com/watch?v=IcUKQNj3HEg


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