Mulheres latinas sofrem com a cultura do assédio em países estrangeiros
Ana Flávia Barbosa, Camilla Andrade, Luana Dias, Nádia Gomes, Nicolle Gonçalves e Rafael Carelli.
As mulheres latinas, em especial brasileiras, são sexualizadas e sofrem com estereótipos e padrões de beleza dentro e fora do país do qual se originam. As imagens dessas mulheres são muitas vezes construídas a partir de olhares machistas sobre seus corpos e comportamentos. Esse pensamento a respeito do público feminino na América Latina é tão enraizado que se estende para outros locais e culturas do planeta, fazendo com que as mulheres estejam passíveis a serem vítimas de assédio moral e sexual em qualquer lugar.
A construção cultural dos países, o machismo, a mídia e até mesmo a Legislação reforçam os estereótipos e tornam ainda mais difícil a vida das mulheres em sociedade. Dados e relatos comprovam as situações de assédio sofridas por latinas ao redor do mundo, ao participarem de programas de intercâmbio, viagens internacionais ou mudarem de país.
Relatos
Jovens intercambistas ao redor do mundo resolveram quebrar o silêncio e relatar casos de assédio que sofreram durante a experiência de estudar em outro país.
Júlia* está fazendo um curso de design de interiores na cidade de Porto, em Portugal, e conta que sempre frequentava uma pizzaria perto da casa onde está morando. O homem que trabalha lá é brasileiro, casado e com filhos. “Conheci ele por ir lá algumas vezes e, na última, que foi depois que voltei do Brasil, ele falou que eu estava sumida, perguntou se eu estava estudando.” A jovem disse ao comerciante que estava em busca de emprego e rapidamente ele a ofereceu um trabalho como freelancer em eventos. “Fiquei feliz por conseguir algo. Ele falou pra gente marcar de se encontrar no dia seguinte para conversar sobre o projeto.” Júlia continuou comendo sua pizza e o rapaz a ofereceu cerveja de graça. Ela aceitou e eles conversaram um pouco sobre o projeto, mas a situação mudou quando o homem começou a dar em cima de Júlia. “Ele começou a falar um tanto de coisa inapropriada, me deixando sem reação alguma! Ele se aproveitou da situação em que eu estava, sozinha em outro país e procurando trabalho… Eu levantei e falei que não estava interessada no projeto e fui embora chorando, com raiva daquela situação que eu nunca tinha passado antes. Me senti diminuída.”
Já Marina* está do outro lado do mundo, na Coréia do Sul. Ela conta que quando os coreanos percebem que ela é estrangeira, eles se comportam de uma forma totalmente diferente e agem de maneira desrespeitosa. “Eles chegam encostando na gente, falam que gostam das ‘curvas’ das mulheres brasileiras”, conta. “Os coreanos têm uma fama, principalmente no Ocidente, de serem certinhos, por ser uma sociedade super conservadora. Só que não é assim. Eles se soltam, principalmente em cima das estrangeiras.” Contudo, Marina afirma que a sociedade machista e o assédio que sofre na Coréia não se comparam ao Brasil. “Estando aqui eu consigo ver claramente o quão perigoso o Brasil é nessa questão.”
A jovem reflete sobre a origem do machismo em ambas as sociedades – oriental e ocidental – e diz que a cultura brasileira está passando por mudanças graças a uma parcela da população que está desconstruindo padrões e quebrando certas atitudes e valores que antes eram considerados aceitáveis. “O feminismo, por exemplo, é muito grande no Brasil e aqui não é. Acho que a noção de feminismo nem existe na Coréia. É uma sociedade super patriarcal e antiga, eles veem as estrangeiras e só pensam em sexo”, conclui.
Alana* é colombiana e está morando nos Estados Unidos, numa pequena cidade da Louisiana. Ela conta que em festas ou em eventos tem que se vestir o mais discreta possível para não chamar atenção dos homens. “Em festas, quando estou dançando, os homens passam e pegam na minha bunda, ou tentam me fazer sentar no colo deles”, desabafa. Além do assédio sexual, Alana também vivencia assédio moral, quando a chamam de prostituta por ser latina, além das piadas que as pessoas fazem sobre cocaína, pela fama que a Colômbia tem no que diz respeito ao tráfico de drogas.
Patrícia* passou uma temporada na Rússia, dividindo o apartamento com uma menina. No andar de baixo moravam um amigo indiano e um colega russo, com quem Patrícia trabalhava. Certa vez, ela foi até o apartamento dos rapazes para conversar com o amigo indiano, bateu à porta e foi recebida pelo colega de trabalho. Ele disse para Patrícia entrar, ela deu um passo à frente e, quando percebeu, ele já havia trancado a porta, guardando a chave no bolso. “Eu fiquei congelada, sem reação, assustada”, lembra. “Eu estava indefesa e não teria a chance de me defender porque ele era um homem grande”.
Patrícia pediu para que o russo abrisse a porta, mas foi surpreendida com a resposta do rapaz. “Ele disse ‘eu sei que você é brasileira, então eu sei que eu posso ter aquilo, né?!’”. Em choque, ela conta que, com raiva, pediu para que o homem abrisse a porta e lhe respeitasse, porque ele estava enganado sobre ela. “Depois de muito custo, ele abriu a porta. Foram um dos piores minutos da minha vida”. Após o ocorrido, o russo pediu para que Patrícia não contasse nada para ninguém.
O assédio contra mulheres reflete a sociedade machista e patriarcal que ainda é presente em vários lugares do mundo. As mulheres latinas têm seus corpos sexualizados e isso é perceptível quando viajam para o exterior, como é o caso das intercambistas que deram seus depoimentos nesta matéria. É importante refletir sobre o papel da mídia como contribuinte para a reprodução desses estereótipos e buscar soluções para a quebra dessas imagens tidas como padrão.
O desenvolvimento do feminismo é um fator importante para a emancipação da identidade da mulher como um todo. Além disso, é importante que existam órgãos fiscalizadores que verifiquem a aplicação de leis contra o assédio e que funcionem como um mecanismo de proteção que acolha e dê suporte às mulheres que vivenciam situações tão alarmantes e inaceitáveis como o assédio.
*Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar sua identidade.
Movimento #MeToo: dois anos depois
Casos de assédio moral e sexual são presentes na vida de mulheres desde sempre, no Brasil e no mundo. Apesar de a pauta contra esse tipo de comportamento ser cada vez mais levantada e defendida por movimentos de Direito das Mulheres, os casos ainda são recorrentes na sociedade globalizada. Cada país apresenta variações destas atitudes que compartilham a mesma origem: o machismo.
Em 2017, atrizes de Hollywood abriram as cortinas para apresentar casos de assédio sexual ao mundo. Nomes como Angelina Jolie, Reese Witherspoon, Jennifer Lawrence e tantas outras contaram e denunciaram o assédio sofrido tanto nos bastidores como em cena por homens famosos da cena cultural. Surgiu então o movimento #MeToo (em tradução livre, “eu também”). As denúncias englobam estupros, violências e outros crimes contra mulheres.
Dois anos após o surgimento do movimento e da publicação da hashtag que foi usada mais de 600 mil vezes na internet em 24 horas, continuam aparecendo casos de assédio no mundo artístico e cultural. Desde então, alguns desdobramentos foram positivos e outros não chegaram a acontecer. O caso mais recente é a denúncia contra o cineasta Roman Polanski de agressão e estupro.
Em 2018, o jornal New York Times publicou um levantamento sobre as consequências do MeToo. Dados mostram que, um ano após o início do movimento, 201 homens perderam seus empregos ou contratos. Cerca de 50% das substituições dessas ocupações foram preenchidas por mulheres.
Assédio no Brasil
No Brasil, casos de assédio também vieram à tona nos últimos anos. Em abril de 2017, o consagrado ator José Mayer foi acusado de assédio por uma figurinista da TV Globo. O depoimento dado por Susllem Tonani no blog do Jornal Folha de São Paulo gerou grande repercussão na mídia e criou uma campanha entre atrizes, diretoras e outras funcionárias da Rede Globo, que vestiram camisas com os dizeres ‘mexeu com uma, mexeu com todas’, seguido da #ChegaDeAssédio. José Mayer foi afastado da novela em que estava escalado e suspenso de atividades na emissora por tempo indeterminado.
Outro caso de grande repercussão no Brasil é o de João de Deus, o médium curador acusado de assédio e abuso sexual por dezenas de mulheres que o procuravam para consultas espirituais. O médium mantém há mais de quarenta anos um centro espírita em Abadiânia, no estado de Goiás, e tem grande visibilidade ao redor do mundo. As denúncias são de casos que ocorreram ao longo dos anos, desde a década de 1980 até os dias atuais. O programa Fantástico, exibido na Rede Globo, coletou depoimentos de 25 mulheres que denunciaram abusos de João de Deus; uma delas revelou abusos sofridos quando ainda era criança. “Ele aproveita das pessoas que estão fragilizadas, que estão doentes, que estão no fundo do poço”, diz uma vítima.