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Edição Jornalística – PUC Minas

Internacional

Água: o petróleo do século 21

“Planeta Água”: a escassez hídrica no mundo já é realidade em alguns países, a desigualdade social e o uso desenfreado do recurso agravam ainda mais este cenário. Segundo a ONU, ter o controle da água significa deter o poder

Anna Clara Andrade, Érika Giovannini, Ilsa Martins Gonçalves, Lara Lopes, Luís Gustavo Gurgel e Matheus Leão

Os seres humanos utilizam recursos hídricos de forma inconsequente. Hábitos como passar horas no chuveiro, deixar a torneira aberta enquanto escovam os dentes, esquecer a mangueira ligada durante o tempo em que lavam a calçada são exemplos de como a água é vista como uma fonte ilimitada. Mas a verdade é bastante diferente do que o senso comum costuma acreditar.

A crise global da água é um assunto que, por mais que não seja tão noticiado, vem acontecendo há algum tempo. Ao redor do mundo, muitos chefes de Estado, cientistas e ambientalistas já se reúnem para debater sobre esse problema que hoje em dia parece muito distante, mas que está cada vez mais perto de se tornar a realidade do planeta Terra.

Segundo dados do episódio “A crise global da água”, da série “Explicando” da Netflix, cerca de 71% da superfície da Terra é coberta por água, uma porcentagem absurda. Então, qual é o grande motivo de o mundo estar passando por uma crise de água? Acontece que, destes 71% de água que o planeta tem, 97% é salgada, 2% está presa em geleiras, e apenas 1% é disponibilizado para o consumo da população.

Além disso, dessa porcentagem que é voltada para as pessoas, a grande maioria se encontra nos subsolos, e o acesso a essa quantia de água é difícil e custa caro. A água subterrânea demora milênios para encher e, caso ela seja retirada, demorará uma enorme quantidade de tempo para que volte a ter o mesmo nível anterior. Outro problema é que o esvaziamento dos lençóis freáticos faz com que o solo afunde, e, consequentemente, as cidades também, mudando o relevo das regiões. Segundo o especialista Efraín Ovando Shelley, do Instituto de Engenharia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), a Cidade do México chega a afundar de 8 a 12 centímetros por ano devido a essa excessiva extração de água dos aquíferos, o que causa riscos para a população da metrópole.

Já que as águas salgadas compõem a maior quantidade dos recursos hídricos presentes no mundo, uma das possibilidades mais teorizadas é a dessalinização, processo em que o sal da água marinha é retirado e ela é preparada para consumo, mas há um problema: o processo exige uma alta tecnologia que a grande maioria dos países não tem. O fator financeiro também é um empecilho, já que esse tipo de tratamento não é barato.

Outra questão que também acentua a crise da água, segundo o documentário, são as mudanças climáticas e o aumento demográfico. As chuvas estão cada vez mais escassas em algumas regiões do mundo, o que gera diversas queimadas, que precisam ser controladas com uma grande quantidade de água. Essas águas, quando penetram na terra, retornam para os lençóis freáticos, dificultando seu reaproveitamento pelos seres humanos.

O professor de hidrologia e recursos hídricos do Departamento de Geografia da PUC Minas, João Henrique Rettore Totaro, explica a diferença na quantidade de água disponível: “Apesar do ciclo da água permanecer o mesmo, existe uma mudança significativa no volume de água doce da superfície e subterrânea e, também, na fase atmosférica, o que resulta na perda severa da recarga dos aquíferos”.

Água invisível

Para avaliar o real consumo de água mundial, esses números não são o bastante, já que significativa parte do gasto humano diário compõe o que se chama de água invisível ou virtual. Esses termos significam a quantificação de toda a água que é utilizada durante o processo de produção para um bem de consumo ficar pronto.

A maioria da água que é disponível para o consumo da população é utilizada na agricultura e na indústria. Apenas 8% é destinado a nós, que equivale a lavar as mãos, escovar os dentes, tomar banho e para beber. É necessária uma quantia absurda para que haja o cultivo dos alimentos. Um único hambúrguer de 100g precisa de 1.650 litros de água para ser produzido.

Outro setor que consome muita água é a indústria da moda, já que o cultivo de algodão utiliza água de modo intensivo. Para cultivar 1kg de fibra de algodão, são necessários de 7 a 29 mil litros de água. Uma camiseta, por exemplo, consome quase 2kg de combustíveis fósseis e quase 3 mil litros de água. 11 mil litros de água são usados para fabricar uma calça jeans e 8 mil para um par de sapatos. A indústria têxtil consome, em média, 93 trilhões de litros de água.

Por fim, um único smartphone consome em sua produção 12.760 litros de água, quantidade equivalente à transportada por um caminhão-pipa médio. Esse dado é do relatório Mind your Step, produzido pela Trucost a pedido da Friends of the Earth, entidade de proteção ao meio ambiente.

Projetos e monitoramento

A situação parece irreversível, mas existem medidas que podem ser tomadas para tentar mudar essa questão. Políticas de conscientização em massa ajudariam a população a entender que a água não pode ser tratada como um recurso ilimitado. A grande maioria das pessoas ainda acredita nessa mentira e simples propagandas na televisão sobre “fechar a torneira enquanto se escova os dentes” não são suficientes para desencadear mudanças significativas.

Os governos precisam começar a cobrar mais pelo uso da água na agricultura e indústrias. Os preços dos produtos aumentariam, obviamente, já que o preço da água também subiria, mas essa mudança serviria como uma forma de equilibrar o uso dos recursos hídricos. Situações drásticas exigem atitudes drásticas.

Já existem lugares no mundo onde a água se tornou motivo de conflitos. Na Nigéria, por exemplo, um lugar onde a água já é bastante escassa, as pessoas, movidas pelo desespero, pela sede e pela fome, brigam entre si para conseguir um pouco de água.

A crise da água é tão real que, na Cidade do Cabo, instaurou-se o “dia zero”, ocasião em que o governo iria desativar indefinidamente o fornecimento de água para a população. A água passaria a ser racionada e as pessoas precisariam ir buscá-la nas estações da cidade. Porém, quando a população percebeu a seriedade da situação, foi mudada radicalmente a forma como usava a água, e o famoso “dia zero” foi sendo adiado até nunca chegar a acontecer, já que a mobilização das pessoas havia conseguido reverter o problema.

Estima-se que muitas outras metrópoles também passarão pelo “dia zero” nas próximas décadas. A menos que tenham atitudes como a Cidade do Cabo, cidades como São Paulo, Melbourne, Jacarta, Londres, Pequim, Istambul, Tóquio, Bangalore, Barcelona e a Cidade do México precisarão fazer racionamento de água muito em breve.

Pesquisas indicam que, por volta de 2040, a maior parte do mundo não terá água o bastante para o ano inteiro. “Quaisquer elementos e processos naturais ou antrópicos dependentes da água serão afetados na proporção direta de suas relações com esse recurso – alguns, muito mais rápida e irreversivelmente que outros. Uma vez que todos somos dependentes dos processos ligados à disponibilidade de água, não são cadeias locais que definem o raio do impacto de uma crise hídrica, mas todas as relações que nos unem”, explica Totaro.

A água é o recurso mais importante para a sobrevivência dos seres humanos e, infelizmente, não existe nenhum substituto para ela. Portanto, caso não haja uma mudança significativa no que diz respeito às relações das pessoas com a água, ela vai acabar.

“Aproximamo-nos lentamente de práticas sustentáveis, mas ainda há muito o que fazer. Questões complexas como as ambientais exigem pensar e agir de maneira integrada, entretanto ainda não nos mostramos capazes fazê-lo”, analisa o professor João Henrique.

Quando os tempos sombrios chegarem e a valiosidade da água for descoberta, ela se tornará o petróleo do século 21.

Agência Nacional das Águas

A Agência Nacional das Águas (ANA), em parceria com outras instituições brasileiras, desenvolveram o projeto Cultivando Água Boa. O programa atua para conservação e recuperação de recursos naturais e no desenvolvimento de uma cultura de uso sustentável desses recursos.

Há também o uso da tecnologia para o monitoramento hidrológico via satélite em todo o país e também em áreas remotas e de conflitos. De acordo com o órgão, a aplicação dessa tecnologia, em parceria com a entidade francesa Institut Recherche pour le Développmente (IRD), é promissora e tem uma atuação rápida para minimizar os efeitos críticos, como as secas e enchentes. Além disso, é econômico, pois não há necessidade de instalação e nem manutenção de equipamentos em terra.

“Esta técnica permite a aquisição de dados em tempo quase real e a ampliação do monitoramento hidrológico em regiões de difícil acesso do país. Ao invés de estações hidrometeorológicas físicas, são criadas estações virtuais a partir de dados coletados por equipamentos embarcados em satélites, o que permite a obtenção de parâmetros de qualidade de água (concentração de sedimentos em suspensão, turbidez e clorofila) e níveis de rios”, segundo nota da Agência Nacional das Águas.

Monitoramento de águas superficiais

Água no Brasil e exportação

Uma das questões levantadas nos estudos sobre água virtual é a exportação “invisível” dos recursos naturais de uma região. Muitos países não têm a quantidade necessária de água doce para atender o consumo interno, mas exportam produtos que consomem indiretamente esse bem.

O comércio indireto de água virtual tem ganhado espaço nas discussões entre as economias mundiais. Ao exportar um quilo de carne bovina, o Brasil tira cerca de 15 mil litros de água de seus recursos (levando em consideração fatores como a quantidade de água usada na produção da ração que alimentará os bovinos) e envia para consumo em outro país. Ao todo, segundo a Water Footprint, o Brasil tem 9% de sua Pegada Hídrica total fora das fronteiras do país.

Nos Estados Unidos, a Pegada Hídrica de um cidadão é de 2,8 milhões de litros de água por pessoa por ano. Desses, cerca de 20% são externos. Segundo a organização internacional Water Footprint, a maior parte desse volume de água é originária da China.

Em comparação a vários outros países, o Brasil tem uma boa quantidade de água. É estimado que cerca de 12% do recurso hídrico potável disponível no planeta está aqui. A Região Norte é onde se encontra o maior número disponível, 80%. Já as regiões próximas ao Atlântico concentram apenas 3% da água doce; isso mostra uma distribuição desequilibrada, pois essas regiões representam 45% da população brasileira.

As águas superficiais são aquelas que não penetram o solo e são consideradas as principais fontes de abastecimento de recurso potável no planeta.

Os principais rios brasileiros supervisionados pela ANA são: Amazonas, Araguaia, São Francisco, Paraíba do Sul, Paraguai, Iguaçu, Paraná e Tapajós.

Falta de água potável

Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), menos da metade da população do planeta tem acesso à água potável, 1,2 bilhão de pessoas não têm acesso a água tratada, 1,8 bilhão não possuem acesso a serviços adequados de saneamento básico e cerca de 10 milhões de pessoas morrem todo ano devido às doenças – cólera, disenteria, febre tifoide e poliomielite – transmitidas pela água contaminada.

Já outro levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2018, é ainda mais preocupante: 2,1 bilhões de pessoas não têm acesso a uma fonte segura e potável, cerca de 1,9 bilhão vivem em áreas de risco de escassez hídrica, 1,8 bilhão usam água contaminada com fezes e, em 2050, seremos 9 bilhões de pessoas no mundo e a demanda por água vai ser 30% maior do que é hoje. Além disso, o ser humano despeja 80% de esgoto, sem nenhum tipo de tratamento, nos rios, lagos e oceanos.

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